Os Anos de Chumbo: arte, memória e consciência

Marcelo Guimarães Lima, 2011




Marcelo Guimarães Lima - Prisioneira,
litografia e xilogravura, 50x70cm, 1986





Marcelo Guimarães Lima - Prisioneira,
aguaforte e aquatinta, 1986



Em meados dos anos 80 eu estudava artes visuais na University of New Mexico, nos Estados Unidos, e escolhi como tema da minha exposição de conclusão do programa de Master of Fine Arts, a ditadura militar no Brasil e a sorte dos prisioneiros políticos e dos militantes contra o regime dos generais: a tortura e o assassinato metódico e sistemático  dos oponentes do regime militar.  O conjunto de trabalhos (pinturas e gravuras) que realizei foi exposto na galeria do Departamento de Artes  Visuais da University of New Mexico em 1986.  Tive oportunidade, logo  após, de expor parte dos trabalhos no Centro Cultural de São Paulo. A exposição foi breve e sem maiores (ou mesmo menores) repercussões. O que, devo confessar, me causou alguma surpresa na época, menos pela
relativa imaturidade do artista iniciante, mais pela relevância que eu pensava ser a do tema no Brasil pós-ditadura.


Lá se vão varias décadas do fim "oficial" da ditadura e continuamos, no Brasil, a dar abrigo não apenas aos "fantasmas" simbólicos, “psicológicos” ou “subjetivos” da ditadura, mas aos carrascos vivos, ladrões e torturadores, aos políticos que insuflaram, apoiaram e serviram "lealmente" o regime militar, a todos que se beneficiaram diretamente da ditadura militar, incluindo grupos de negócios e alguns dos grandes grupos mediáticos do pais.


Nenhum torturador, nenhum general gorila ou político golpista, nenhum corruptor e corrupto da ditadura, nenhum de seus mandantes, ativistas, ideólogos, executores e beneficiários foram punidos no Brasil. Isto é clara indicação que uma parte da ditadura não acabou, que com ela ainda convivemos . As tentativas recentes de ruptura final com este passado vergonhoso encontram oponentes ativos dentro mesmo das próprias instituições da "democracia plena" brasileira.


Pregar o "esquecimento" do passado como passado revoluto e terminado, como tempo longínquo, apartado e concluído, é argumento falacioso dos que querem de fato preservar a incorporação silenciosa, “inconsciente” deste passado nas estruturas, na ideologia e nos processos do Brasil
de hoje. Pois de fato, a chamada transição democrática no Brasil foi em aspectos importantes, como a denominou Florestan Fernandes, um processo de "conciliação das elites". "Façamos a “revolução” antes que o povo a faça" foi o “mote” do golpe militar de 1964, movimento sedicioso e subversivo da ordem legal do país, movimento antipopular, antinacional, que instrumentalizou as Forças Armadas do Brasil como forças auxiliares da Guerra Fria, a serviço dos interesses dos sócios internos, diretos ou indiretos, da potência hegemônica do seculo XX, de seus associados e subordinados ideológicos, de parcela significativa das classes dirigentes locais contentes na subordinação da nação e no papel de sócios menores em seu próprio pais.  "Façamos a transição antes que o povo a faça" foi, por sua vez, o “mote” dos que, na impossibilidade da continuidade da ditadura tal e qual, optaram por abrir mão dos anéis para reter os dedos, isto é, preservar o poder de fato de manipulação e decisão na vida institucional e nos processos vitais do pais.





 



Marcelo Guimarães Lima - Prisioneira,
aguaforte, 1986



Os que se posicionam hoje contra a investigação e punição dos responsáveis pela tortura e pelo assassinato de brasileiros que resistiram ao golpe militar e ao regime ditatorial imposto chamam de
“revanchismo” a exigência básica de justiça na vida social e política de uma nação, sem a qual os processos coletivos e os conflitos estruturais e estruturantes da vida nacional tendem a degenerar na
violência e no barbarismo. Deste modo, os adversários da revisão das leis da “anistia” impostas pela ditadura  banalizam os crimes cometidos, eximem de responsabilidade os criminosos, ofendem a memória das vítimas e insultam a inteligência e  o senso moral dos brasileiros. Esta oposição interessada e articulada pretende “enterrar” o passado, ou melhor, a imagem de um passado que não lhe beneficia hoje, para que os resultados deste passado “esquecido” continue seus efeitos na vida atual.

Não custa lembrar que não há desenvolvimento nacional de fato quando não existe prática democrática real. O que faz um país é seu povo, e um país não se desenvolve de modo consequente e duradouro quando o povo é apartado das decisões fundamentais. Não há desenvolvimento nacional de fato quando o povo é feito mero espectador, ao invés de ser o ator central da história da nação. A ditadura militar atrasou o relógio da nossa história em 50 anos. Vivemos ainda hoje, neste momento de mudanças fundamentais na ordem econômica e política mundial, um tempo de desafios fundamentais aos brasileiros, com os fardos ideológicos, institucionais e estruturais do legado da
ditadura.


O trabalho e o esforço dos brasileiros nas últimas décadas, contra todas as dificuldades que nos são impostas diariamente por um sistema econômico e institucional  em muitos aspectos obsoleto, um sistema subordinado, imediatista e ainda gravemente ineficiente em relação às necessidades da maioria, um sistema organizado por  uma classe dirigente de vistas curtas e interesses restritos, o esforço dos brasileiros, aliado a uma conjuntura de mudanças nos eixos de domínio mundial e de crise nos países hegemônicos, este esforço propiciou avanços importantes, ainda que incompletos, na incorporação de um largo contingente de brasileiros na economia e na sociedade nacional.
Marcelo Guimarães Lima - Prisioneira,
aguaforte e aquatinta, 1986



Vivemos neste ainda novo século o início de um  processo de transformação global profunda que não admite hesitações, timidez,  oscilações ou recuos. E igualmente não admite e não admitirá assimetrias e desequilíbrios entre o desenvolvimento econômico, político, cultural e ideológico dos povos e das nações, sob pena de perder-se hoje não apenas o trem-bala, mas o avião supersônico ou mesmo a nave espacial da história em marcha, cuja velocidade, na era digital e globalizada, e apesar dos ideólogos do “fim liberal” da história, se acelera exponencialmente a cada fase, com desafios crescentes, inéditos e renovados.


As mudanças estruturais que se esboçam no Brasil de hoje necessitam a contrapartida essencial de uma mudança nas consciências, de uma  revolução cultural que nos permita dominar e orientar a mudança no sentido de uma sociedade mais livre, mais criativa e mais justa. Neste processo as artes, desembaraçadas da tutela mercantil-mediática do sistema cultural do neoliberalismo em ocaso, tem um papel importante a cumprir no resgate das consciências e na afirmação de novos valores, novos processos e novos modos de vida.


A luta em favor da consciência e seus valores, isto é do conhecimento a esclarecer e guiar a ação humana, suas fontes, seus meios e fins, a luta pelas consciências, é parte constituinte da atividade artística. Esta convicção expressa nos trabalhos passados aqui mostrados, conservo hoje. A arte é uma forma de reflexão ativa, material e sensível, sobre o estar-no-mundo, sobre o significado do humano, sobre o enigma da existência que requer uma resposta ativa, material e sensível, uma reflexão presente sobre a presença no tempo e no espaço das consciências, que refaz a imediates do sentimento ao mesmo tempo físico, moral e estético da realidade e do sujeito, como sentido de um mundo, aquele que construímos na ação coletiva e na comunicação, na  partilha. 




Marcelo Guimarães Lima, texto originalmente publicado no site malazartes.net em 2011




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